Crédito travado no campo gaúcho: negociar não faz o produtor plantar

O produtor gaúcho chegou a 2025 com três choques de estiagem e uma enchente histórica na conta. O resultado é queda de produção, receita comprimida e um passivo que foi sendo “rolado”, mas sem recompor limite para o próximo plantio.

Sem limite, não há custeio; sem custeio, não há renda para pagar nem a dívida rolada nem a corrente. O estado do Rio Grande do Sul registrou, em 2024, a pior tragédia climática de sua história recente, com mais de 200 mil propriedades rurais atingidas — um choque de produtividade e de caixa que não some com uma mera renegociação.

A dimensão macro agrava: a Selic em 15% a.a. prolonga a restrição monetária, freia crédito e atividade e pressiona o fluxo de caixa do campo. Mesmo com alguma desinflação, o próprio governo reconhece a transmissão forte da política de juros sobre crédito e PIB.

Houve avanços: o CMN e o governo abriram linhas especiais para produtores afetados por eventos climáticos, inclusive no RS, com taxas entre 2% e 10% a.a. para liquidar/amortizar dívidas, e ampliaram o rol de municípios contemplados (agora 459).

Também vieram R$ 12 bilhões em crédito emergencial segmentado por porte. São passos corretos — mas focalizados em renegociar ou quitar passivos. Eles não reconstroem o limite de custeio para o próximo ciclo quando o produtor já está “no teto”.

No Plano Safra 2025/26, as taxas equalizadas ficaram abaixo do mercado, mas a base Selic alta encareceu e racionou o crédito, efeito sentido sobretudo por médios e grandes fora das faixas mais subsidiadas. Entidades do setor já alertaram que a atual estrutura de juros compromete a efetividade do Plano.

Onde dói na prática

  • Risco e garantias: com balanços fragilizados, os bancos elevam risco, pedem mais garantias e bloqueiam novos limites para quem já rolou dívidas.
  • Custeio estrangulado: sem capital de giro/custeio, o produtor não planta e não gera a renda operacional que viabiliza pagar a dívida antiga e a nova.
  • Efeito bola de neve: renegocia-se hoje, inadimplência amanhã porque faltou grana para a safra que pagaria o acordo.
  • Proposta: “Crédito-Espelho RS” (novo limite na mesma medida da dívida rolada)
  • A solução simples: toda dívida rural renegociada/rolada no RS daria direito automático a um novo limite de crédito de custeio no mesmo montante, o “crédito-espelho”,com garantia pública parcial. Assim, o produtor recebe o combustível para plantar, gerar caixa e pagar o acordo e as parcelas correntes.
  • Como viabilizar a garantia: usar e integrar fundos garantidores já existentes (e hoje subutilizados para o agro) — FGI/BNDES, FGO e Fampe/Sebrae — e, se necessário, criar um “FGI Rural” dedicado ao agronegócio, como o próprio BNDES já aventa. Complementar com FGE (para operações ligadas à exportação/commodities) quando couber

Arquitetura sugerida

  • Elegibilidade: produtores do RS com comprovação de impacto climático (2020–2025), com operações prorrogadas por Resoluções CMN recentes.
  • Tamanho do crédito: valor da dívida rolada (teto por CPF/CNPJ).
  • Finalidade: custeio e capital de giro vinculados ao ciclo produtivo (insumos, serviços, armazenagem).
  • Garantia pública: cobertura 60%–80% via FGI/FGO/Fampe/“FGI Rural”; contrapartida de 20%–40% privada (CPR, penhor, aval).
  • Taxa e prazo: juros equalizados nas faixas já abertas para calamidade (2%–10% a.a., conforme porte), prazo compatível com ciclo + 1 safra (até 36 meses), com bônus de adimplência.
  • Condições prudenciais: acesso condicionado a ZARC, seguro rural/PRA ou adesão a programa de gestão de riscos (reduz risco moral e custo fiscal no tempo).
  • Securitização/saída: permitir CRI/CRA do “crédito-espelho” com a garantia pública parcial, abrindo espaço a fundos privados.

Por que funciona?

  • Reata o ciclo econômico: novo custeio → produção → receita → pagamento da dívida antiga e da nova.
  • Reduz perda esperada do Tesouro: garantia cobre parte do risco, mas a safra produzida diminui a inadimplência.
  • Custo fiscal controlável: em vez de subsídios difusos, a garantia é condicionada (RS/Calamidade), com limite, prazo e régua de desempenho (bônus de adimplência e gatilhos de corte).

Comparativo: o que temos hoje x o que proponho

  • Hoje: prorrogação, linhas para amortizar/liquidar passivos e algum crédito novo, porém sem regra automática para recompor limite em quem já estourou o teto.
  • Proposta: regra automática de “crédito-espelho” com garantia pública — foco no giro que viabiliza a renda operacional para honrar a própria renegociação.

Evidências e contexto

Impactos climáticos severos no RS rebaixaram produção e renda; o Ipea e o governo do RS quantificam perda ampla em grãos (soja, milho, trigo, arroz) e 206,6 mil propriedades afetadas.

O governo federal tem linhas e pacotes (R$ 12 bi; taxas reduzidas e novos municípios), e o CMN acaba de aprovar mais medidas focadas em produtores atingidos — especialmente no RS —, sinalizando espaço regulatório para ajustes adicionais como o “crédito-espelho”.

Em paralelo, a Selic em 15% segue sendo uma âncora de custo/escassez de crédito. Mesmo com equalização no Plano Safra, a base cara raciona e limita o alcance prático.

Contrapartidas responsáveis

  1. Gestão de risco obrigatória (ZARC + seguro rural), reduzindo sinistralidade.
  2. Transparência e governança dos fundos garantidores (comitê RS, indicadores mensais).
  3. Cláusula de performance: bônus de juros para adimplência e redução automática da garantia conforme melhora de rating.
  4. Foco territorial: priorizar cadeias críticas (arroz, leite, soja) e municípios com laudo de calamidade.

Negociar sem recompor limite é empurrar o produtor para fora da próxima safra. O “crédito-espelho” com garantia pública parcial é a ponte entre a dívida rolada e a renda operacional que paga a conta.

O arcabouço regulatório já existe (CMN, fundos garantidores); falta vontade de conectar as peças. No RS, isso não é política de nicho: é segurança alimentar, emprego e arrecadação. E é agora — antes que a lavoura vire estatística

Miguel Daoud

*Miguel Daoud é comentarista de Economia e Política do Canal Rural


Canal Rural não se responsabiliza pelas opiniões e conceitos emitidos nos textos desta sessão, sendo os conteúdos de inteira responsabilidade de seus autores. A empresa se reserva o direito de fazer ajustes no texto para adequação às normas de publicação.

Compartilhe:
WhatsApp
Facebook
Twitter
LinkedIn